– Conto de Natal, ecrito por @autopoesys
Este conto é baseado numa história que ouvi certa vez da boca de um homem sabio e santo, Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida.
Sempre é tempo de renovar!
Era noite de natal!
Noite fria e úmida pela chuva fina e mansa que caia do céu escuro sobre o teto da prisão em que Manoel estava encarcerado.
Recluso em uma solitária devido aos seus comportamentos indomáveis, ele segurava com mãos trêmulas e o coração palpitando aquele pedaço de bolo de ceia de natal, que acabara de ganhar de dona Conceição.
Recusava acreditar que aquilo estava acontecendo com ele.
Ele, um sujeito mau, por natureza conforme dizeres das pessoas, meliante e desacreditado socialmente, em quem ninguém punha a menor esperança de que algum dia, ainda que fosse no último instante da sua existência, pudesse se emendar e mudar de vida, e se tornar uma pessoa boa.
De uma senhora, que só o conhecia de ouvir falar das coisas terríveis que o novo prisioneiro vinha fazendo na cadeia da vizinhança, aterrorizando a todos sob o medo de que se fugisse, traria suas maldades para dentro de suas casas, acabara de ganhar um pedaço de bolo de ceia de natal, junto com um sorriso singelo e um pedido cordial.
Recordações
Começando a saborear aquela porção de bolo e pensando se conseguiria realizar o pedido de sua inesperada visitante, Manoel foi tomado por um súbito espírito de nostalgia. Em sua alma flashbacks de sua existência entravam em cena, fazendo o seu coração dar passos num tempo pretérito em que a sua vida surgia como lembranças de tristeza e dor…
Recordou de sua infância pobre e sem graça numa cidadezinha do interior do nordeste do país.
A falta de quase tudo, de moradia digna para habitar, do pão nosso que quase nunca era de cada dia, de uma sala de aula para estudar, contracenava com os sentimentos de desesperança que acabrunhavam o seu peito infantil.
Porém, no exemplo de luta e entrega dos seus pais que não desistia da vida que pesava sobre os seus ombros e sempre buscavam, através do trabalho árduo, formas de sobreviver, Manoel encontrava algum sentido para tocar em frente o rumo de sua sina.
Em busca da terra prometida
Então, jovem entra na lista de ser mais uma pessoa que, como Moisés da Bíblia e tantos conterrâneos seus, abandona sua casa e parentela e vai para o lugar da terra prometida, onde corre o leite e mel das oportunidades melhores de se viver.
Inicialmente, seus pés o conduzem para a afamada grande capital brasileira, São Paulo, para depois ir fincar tendas em outra, não menos falada, Rio de Janeiro. Em ambos lugares, experimentou na carne aquilo que os livros de teoria da sociologia chamam de alienação e exploração do trabalho, e exclusão dos miseráveis.
Trabalhou feito animal de carga, sem nunca se reconhecer naquilo que fazia, para construir os espaços da cidade onde depois ele não poderia entrar, de pés descalços. Somente nas igrejas, lugar em que se diziam ser a casa de Deus, podia entrar. Mas de vez em quando, nos horários que não havia missa e aí não incomodaria a multidão de fiéis sedenta por comungar o Cristo pobre de Nazaré na hóstia consagrada.
Seu corpo machucado pelo abandono e indiferença, tornou-se condenado pelo crime.
A situação de miséria que o abraçava, aos poucos, o conduziu para o caminho da delinquência, como alternativa de sobrevivência.
Começou roubando comida nas prateleiras do supermercado para não morrer de fome. Daí vieram as companhias que o apresentaram formas mais sedutoras e sofisticadas de ganhar a vida, através do consumo e tráfico de drogas. E, de repente, Manoel já era um sujeito temido no morro das favelas do Rio de Janeiro.
Para se manter no controle da situação, encontrou na violência uma clava forte, que fazia dele um filho legítimo da pátria mãe gentil, que não foge da luta.
Não demorou muito começou a frequentar as prisões locais. Entre tantas fugas e conduções prisionais várias, já perdera a conta das vezes que estivera preso e dos dias em que acostumou a ficar engaiolado como um passarinho. Agora estava em nova prisão.
Mas mesmo naquele lugar de privação da liberdade, Manoel tinha que dominar a ocasião. E, assim, colocava em prática as lições de sobrevivência das ruas, batendo em todos que o desafiavam. Aprendeu que pelo medo podia conquistar respeito onde quer que estivesse.
Do lado de fora da prisão, corria na boca miúda entre os moradores da redondeza, a fama do prisioneiro, que acabara de chegar, temido pela crueldade praticada com outros detentos, para conquistar seu espaço. Não foram poucos os abaixo-assinados que logo brotaram, pedindo a sua transferência para uma penitenciária de mais segurança, sob o risco de ele fugir e praticar suas maldades entre os moradores locais.
Um pedaço de bolo e um pedido
Mas, num barroco do morro próximo a prisão onde estava Manoel havia uma senhora conhecida pelo nome de Maria da Conceição.
Mulher com a alma desprovida de preconceitos e o coração transbordante de misericórdia, ficava incomodada ao ouvir as histórias sobre o prisioneiro Manoel.
Ela que lidou com tantos casos como daquele prisioneiro, de pessoas condenadas ao abandono e sofrimento, por sua condição de social, econômica, de pele ou até mesmo religiosa, que aprendera a acreditar no mistério da redenção humana.
Sua fé cristã não deixava perder a esperança na ressurreição dos corpos já nesta vida, não importando tanto o seu pecado, por mais hediondo que fosse.
Assim, naquela noite chuvosa de natal, após cear com sua família, recolheu um pedaço de bolo e foi até a prisão onde estava Manoel.
Como já era frequente as visitas da dona Conceição à prisão, sem dia e horas marcados previamente, não foi nenhuma surpresa para o guarda da guarita recepcioná-la. O inusitado ficou por conta de quem seria o visitante da vez.
– Boa noite dona Conceição! O que a traz aqui neste dia de natal em que deveria estar com a família? Ainda mais neste horário e debaixo desta chuva que não para de cair e pode lhe trazer algum resfriado. – Disse o guarda vigilante esboçando um sorriso simpático.
– Boa noite, meu filho! Não se incomode com minha visita a esta hora da noite de natal. Serei breve. Quero ver o Manoel e lhe dar este pedaço de bolo da ceia que acabei de fazer com minha família lá em casa. – Respondeu dona Conceição, também demonstrando feições amigas ao jovem policial sentinela.
– Pra quem mesmo, dona Conceição, a sra quer levar este pedaço de bolo? – Perguntou o guarda, não acreditando que Manoel era o destinatário daquele presente. – a sra deve está confundindo os nomes, né mesmo?
– Estou velha meu filho, mas não lerda. – Disse a senhora bondosa com um sorriso debochado. – Quero dar este pedaço de bolo para o Manoel e logo, antes que esta chuva me faça pegar um resfriado, como você bem falou.
Está bom, dona Conceição! Se a senhora acha que aquele sujeito sem alma merece um presente de natal, quem sou eu para impedir a senhora de levar pra ele este pedaço de bolo.
– Isso mesmo, meu filho! Não cabe a nós julgar ou condenar ninguém pelo que fez ou deixou de fazer, esta tarefa cabe ao nosso criador, que na verdade não é juiz impiedoso, como dizem por aí o povo das igrejas, mas pai misericordioso, igual nos ensinou Jesus nos evangelho.
Ao ouvir estas palavras que lhe soou como um tapa de luvas, ante sua mania de avaliar as pessoas pelo seu estereótipo, o guarda conduziu dona Conceição até a solitária onde estava Monoel, em silêncio e pensativo.
Manoel ficou sem reação ao ver aquela senhora bondosa, com um sorriso angelical no rosto, olhando para ele com amor e atenção, e lhe estendendo aquele pedaço de bolo.
– Meu filho, vim aqui trazer pra você este pedaço de bolo da ceia de natal que fiz com minha família. É meu presente de natal pra você. Singelo, mas de coração. Por favor, aceite.
– Mas, dona, por que a senhora trouxe este pedaço de bolo pra mim? – Disse Manoel, sentindo-se indigno de receber qualquer presente naquele dia. – A senhora deve saber que faço maldades com as pessoas e, por isso, estou recebendo a punição que mereço.
– Meu filho estou lhe dando este pedaço de bolo por que quero. Tenho ouvido falar muita coisa sobre você, é verdade. Mas, sei que você antes de qualquer coisa é um ser humano, filho de Deus e, como todos filhos e filhas de Deus, foi criado por amor e para o amor. Sei que você no fundo é uma pessoa boa e merece ser valorizado pelo bem que é capaz de fazer. Por isso, só lhe peço uma coisa? Posso lhe fazer um pedido?
– Sim, senhora! – Disse, Manoel, com voz trêmula e lágrimas escorrendo pelos olhos, diante daquele acolhimento inesperado daquela senhora que ele nunca tinha visto na vida. – Pode fazer o seu pedido.
– A partir de hoje não brigue mais com ninguém. Ofereça ao mundo e as pessoas em sua volta a bondade que há em seu coração, fruto do amor divino com o qual foi criado. Faça isso e será feliz.
– Pode deixar, senhora…
– Conceiçao. – Interveio dona Conceição ante a indagação no olhar de Manoel sobre qual seria o seu nome.
– Ha, sim! Dona Conceição, pode deixar que minha palavra eu cumpro. A partir de hoje não vou brigar com mais ninguém, nem aqui desta cadeia nem de outro lugar. A senhora só vai ouvir boas notícias minha…pode ter certeza disso…palavra de Manoel.
– Eu sei e acredito em você, meu filho. E rezo para que Deus lhe ajude a ser firme neste bom propósito do seu coração.
Com essas recordações ainda fervilhando em suas entranhas, após acabar aquele pedaço de bolo, Manoel recolheu-se no chão da solitária para tentar dormir.
Ele que não era perito em fazer belas orações como os fiéis religiosos, balbuciou algumas palavras em forma de preces, pedindo a Deus forças para poder cumprir sua promessa a dona Conceição. Dormiu como nunca antes, naquela noite de natal.
O melhor presente
Nos dias seguintes, os companheiros de detenção de Manoel estranharam bastante a mudança brusca no comportamento dele.
Manoel passa as horas quieto, perdido nos seus pensamentos. Em determinadas situações, dispunha a ajudar nas tarefas da prisão, como varrer o pátio do banho de sol, auxiliar na lavanderia ou refeitório servindo refeições.
Para muitos, esta transformação inacreditável, cuja causa desconheciam, era um alívio; afinal, não precisa temer mais o nordestino perigoso. Mas, outros, querendo aproveitar do ensejo, aguardavam uma oportunidade de devolver a Manoel a violência que ele praticara contra eles.
Então, num banho de sol pela manhã, alguns de seus companheiros sedentos de vingança orquestraram uma peça final contra o rapaz ressuscitado.
Um detento chegou junto a Manoel e o atiçou para que ele caísse na briga. E aí, enquanto lutassem, outros dois chegariam de surpresa e o apunhalaria pelas costas, pondo fim a sua vida.
Não foi preciso tanta artimanha para executarem o seu plano, pois quando provocado, Manoel manteve-se inerte, resistente a qualquer tipo de briga.
Ao tombar com o corpo encharcado de sangue, pelos golpes de faca recebido de seus adversários, Manoel, antes de desfalecer, chamou um dos guarda que viera para apartar aquela confusão, e que por coincidência era o mesmo que estava de vigília na noite de natal quem recebeu o pedaço de bolo da dona Conceição, e, por últimas palavras disse para que aquele policial desse um recado àquela senhora bondosa.
– Seu guarda, fala pra dona Conceição que eu cumpri minha palavra pra ela; não briguei mais com ninguém desde quando ela me pediu.
Consternado com a morte de Manoel, após seu sepultamento, o jovem guarda procurou a dona Conceição para lhe contar tudo o que aconteceu ao rapaz nordestino, e como ele bravamente cumpriu sua promessa até o último momento, pedindo que a comunicasse sobre a fidelidade de sua promessa a ela.
Antes de voltar para a prisão, perguntou para ela, como foi possível um homem tão rude e maldoso ter tido uma mudança inesperada e rápida assim na vida. Ninguém dava nada pelo Manoel.
Dona Conceição, olhando nos olhos daquele guarda como quem quer transmitir um recado importante,falou-lhe que toda vez que uma pessoa é acolhida e amada pelo que é, independente do que fez ou faz, ela se sente valorizada. E a partir daí é capaz de assumir a responsabilidade pelos rumos da sua vida.
Por isso, concluiu dizendo ao guarda,
– O melhor presente que você pode dar a uma pessoa é mostrar para ela que ela tem valor neste mundo.
Livre,
Leve,
Voe!